Desterro, 3 de maio de 1885
Dão-se neste país e particularmente nesta terra que tem o infeliz nome de Desterro, as maiores arbitrariedades, os mais ridículos escândalos que ensifilizam o caráter de uma sociedade que campeia de civilizada.
Precisar-se-ia vibrar um latego de luz, na frase larga do poeta, por essas consciências nubladas e torpes.
A imparcialidade, a crítica, a independência de ideias, obrigam-nos a arremessar os tropos mais valentes, os anátemas mais furiosos, sobre tantos desmandos e vergonhas.
Neste tempo em que a nevrose abolicionista faz palpitar o organismo dos verdadeiros corações honestos, dos inteiros propugnadores das três únicas virtudes teologais – a liberdade, a igualdade e a fraternidade – causa espanto e assombro mesmo que o sangue da moralidade e do critério, não galópe das fibras do peito à cara espapaçada de alguns cavalheiros, cujos instintos animais, rebentam, como cóleras fulvas sobre a cabeça de uma raça desgraçada e triste como a treva.
O sr. Estevão Brocardo tem um escravo que debaixo do ódio vermelho e terrível do seu senhor, seu dono, tem suportado as calamidades atrozes da dor, do desespero e da perseguição.
Esse escravo, achando-se mal na companhia desse Senhor, trata de abonar-se a alguém mais compadecido de sua vida (...) espírito a rolar pelo antro da raiva à fora, na inconsciência do mal, do direito e da humanidade, não aceita o abono do escravo e... vende-o.
Isso faz explodir os ahs! da nossa indignação.
E os srs. Chefe e Delegado de Polícia – os Catões da justiça, da ordem, do dever – fazem terceto com o sr. Brocardo, nessa grande opereta canalha do deboche social.
Nem o civismo, nem o amor que se deve ter por essa escravidão sinistra que deixa como que o sol deste país profundamente eclipsado nas mais pardacentas e lúgubres sombras, os demoveram do seu propósito.
S.S.., deveriam saber que antes do mais estava a justiça e a verdade; desde que o escravo encontrou quem o abonasse, o sr. Brocardo e os dignos britadores do erro, ao menos para alardear magnanimidade e crença abolicionista, deviam consentir nesse abono, precisamente; e ainda isso, dentro da circunstância precisa, da particularidade especial, do mau trato que recebe o escravo.
Essa é que era a adesão à causa do Bem , à causa do progredimento da pátria que é livre intuitivamente pela sua força de seiva, pela sua expansibilidade farta de território e de natureza vegetal.
Anatematisando, daqui destas colunas, o fato tremendo e repugnante que se deu nesta terra, nós, que não poderemos dar um pontapé vigoroso na alma pequenina do sr. Estevão Brocardo, batemos palmas e pulamos de contentes como a criança a quem se atira alguns doces, por lhe darmos hoje, no seu vulto de escravocrata esta bonita e franca bofetada... de luz.
Não acusamos o sr. Estevão Brocardo que se unifica à nossa individualidade, pelo fenômeno do sangue e da espécie, mas sim o sr. Estevão Brocardo acéfalo para o direito e míope do progresso, o sr. Estevão Brocardo que é, nos trâmites da razão, um verdadeiro caso anormal.
O Major Estevão Brocardo, genro do comerciante João Pinto da Luz e proprietário de escravos simbolizou nas páginas d’O Moleque o proprietário insensível e avesso ao progresso. Na capa de uma das edições de março ou abril de 1885, com a legenda "Cena escandalosa...", O Moleque estampou uma cena de maus tratos de Brocardo contra um de seus escravos, ocorrida praticamente em público, nas dependências da polícia. Dias depois, o jornal noticia que um escravo de Brocardo, possivelmente o mesmo submetido à violência, tinha conseguido quem pagasse o preço de sua alforria, mas foi, ao contrário, vendido. Não era incomum que os escravos negociassem a troca de senhores quando a relação se mostrava insustentável. Na década de 1880, se tornou mais frequente a prática de um escravo ou uma escrava alcançar a alforria com recursos emprestados de uma terceira pessoa, com quem contratavam prestação de serviços como forma de pagamento. Durante a campanha abolicionista, os castigos físicos, os anúncios de compra e venda e as atitudes intransigentes de senhores de escravos passaram a ser divulgados com comentários críticos, expondo os senhores à condenação pública.
O Moleque. Desterro, 03/05/1885, anno 1. Biblioteca Pública de Santa Catarina.
LIMA, Henrique Espada. Da escravidão à liberdade na Ilha de Santa Catarina. In: Beatriz Gallotti Mamigonian; Joseanne Zimmermann Vidal. (Org.). Uma história diversa: Africanos e afro-descendentes na Ilha de Santa Catarina. 1ed.Florianópolis: Editora da UFSC, 2013, v. 1, p. 195-221.