A festa que se realiza na freguesia de Trás do Morro, a uma légua da capital, no dia da Santíssima Trindade, começa, pode dizer-se, na véspera à tarde, quando os pretos e pretas, moços ou velhos, com grandes tabuleiros rasos ou altas caixas de vidros, atopetados de frutas e doces, despegam a um e um de vários pontos da cidade e, reunindo-se em bandos como formigas carregadoras, juncam os caminhos na direção daquela freguesia, pelo Pau da Bandeira, pelo Saco dos Limões e pela Pedra Grande. Estes primeiros grupos são seguidos por outros, compostos na maior parte de indivíduos negociantes nas antigas casinhas de pasto do Mercado Velho, que vão armar suas barracas de comida no largo da Trindade, bem em frente à igrejinha. E até a meia-noite rodam carroças e passam cargueiros, abarrotados de gêneros e bebidas que uma multidão de muitas mil almas vai devorar, no outro dia, numa alegria aldeã, a sorrir e a palrar expansivamente, à sombra do pano branco das tendas, ou em pleno sol resplandecente, em meio à praça apinhada.
Em A Ilha, Virgílio Várzea descreve cada local da Ilha de Santa Catarina como se levasse o leitor a um passeio. Era por certo uma maneira de o escritor, radicado no Rio de Janeiro há anos, apresentar sua terra natal para o público curioso da capital e de outras partes do Império. Várzea tratou especialmente da geografia e da economia locais, dando menos ênfase à população e sua história. É evidente, pela leitura, que a economia de abastecimento que ocupava os habitantes do interior da Ilha já não estava no seu auge: a produção dos engenhos parece pequena e voltada para a alimentação da população local. Há pouquíssimas menções à população de origem africana, mas uma delas é riquíssima pelos detalhes que nos oferece. Trata-se do relato da Festa da Santíssima Trindade (que, no século XX, ficou conhecida como Festa da Laranja), celebração tradicional do calendário festivo local, que ocorria (e ainda ocorre) durante a semana de celebração de Corpus Christi. Nele, Várzea destaca a participação dos vendedores de alimentos, “pretos e pretas, moços ou velhos, com grandes tabuleiros rasos ou altas caixas de vidros, atopetados de frutas e doces” que, “como formigas carregadoras” iam do centro da cidade para a Trindade pelo morro (Pau da Bandeira), pela Agronômica (Pedra Grande) ou pelo Saco dos Limões. Do relato, depreende-se a continuidade da ocupação da população de origem africana no mercado ambulante de alimentos frescos e preparados. Várzea também nos brinda com uma imagem do antigo Mercado, relatando que na frente da Igreja da Trindade (atualmente Igrejinha da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC) as barracas de comida reproduziam “casinhas de pasto” do Mercado Velho, então já demolido. É um testemunho precioso sobre o tipo de uso que o espaço do primeiro Mercado teve nos seus últimos anos de funcionamento, servindo de ponto de encontro e confraternização em torno do preparo e da venda de comida pronta. É tentador imaginar que alguma casinha de pasto fosse comandada por mulher africana ou por filhas ou netas, como zungus do Rio de Janeiro imperial.
VÁRZEA, Virgílio. Santa Catarina: a Ilha. Florianópolis: IOESC, 1984.
Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/santacatarina-virgilio-1.htm (acessado em 17/01/2019)
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Zungú: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998.