Olá!... Ontem, aonde te meteste? Não te vimos todo o dia...
– Não lhes conto nada! Fui à Lagoa. Por isso é que não apareci. Mas, imaginem vocês, imaginem bem o que é esta minha vida! Aqui para nós: meu pai obrigou-me a ir à Lagoa para ser benzido!!
Vejam lá, veja lá a quanto chega a minha desgraça – a ser benzido por um curandeiro!!
Meu pai, coitado, vocês sabem... vê-se no desespero da fome. Isto em reserva, havia três dias que só se comia couve cozida, dos restos de mudas que minha mãe, doente como anda, rebusca pelo quintal. Vejam só isto!...
Anteontem foi uma tempestade medonha, quando eu lhe disse que não acreditava em feitiço. Agastou-se.
– Pois então é: Todos dizem que sabes tanto, tens tantos amigos, e por que essa gente não te dá um emprego que nos mate a fome, que nos tire desta miséria?! Tu que lês tanto não vês logo que é “cousa feita”?! Está resolvido, João, hás de ser benzido, eu o exijo e ordeno.
– Mas então estes livros mentem, por v
Este precioso fragmento de memória de Santos Lostada, amigo de Cruz e Sousa, expõe o contraste entre as ideias cientificistas em voga no final do século XIX e as crenças tradicionais da população. A falta de oportunidades e a penúria vivenciadas por Cruz e Sousa eram vistas por seus pais como resultado de feitiço. Carolina aproximou-o da irmandade do Rosário, Guilherme insistiu que fosse benzer-se na Lagoa. Cruz e Souza rejeitava essas crenças como incompatíveis com a razão. Acreditava nas explicações da filosofia e da ciência para os fenônenos do mundo. Estava em sintonia com as ideias danova geração de intelectuais, chamada de “Geração de 1870”, que defendia o progresso e criticava as tradições, responsabilizando-as pelo atraso do País.
LOSTADA, Santos. Etapas da Herança II. A Página, Florianópolis, 28 jul. 1900. Reproduzido em JUNKES, Lauro. (Org.). Minutos de Mar. Florianópolis: Academia Catarinense de Letras, 2008. p. 71-73.