Novenas de Maio
Trajano Margarida
Sentada num cantinho escuro da cozinha
E, quase sempre olhando o fogo no fogão,
Vovó sem ser feliz, cantava a ladainha
Que mais a consolara em sua escravidão.
E, sem que eu pedisse, a boa e sã velhinha,
Com voz dorida e fraca e cheia de emoção,
Cantava, uma por uma, as preces com que vinha
Ditosa embalsamando o próprio coração.
Em uma noite em que atentamente eu a ouvia.
Sem mesmo eu esperar, Vovó com voz magoada,
Seu canto terminou: com flores, a porfia...
Não cantou mais. Depois fingindo um ar de graça,
Limpando os olhos disse: – A lenha é tão molhada
Que até me fez chorar, por causa da fumaça
Fonte: MARGARIDA, Trajano. Novenas de Maio. A Gazeta, Florianópolis, ano 2, n. 322, p. 2, 21/09/1935.
Escrita por Trajano Margarida, essa é uma, dentre as poesias escritas por ele, que relembram sua avó, Geralda, e os anos em que ela havia sido escrava. Ao mesmo tempo que buscavam se afastar da associação com o trabalho escravo e garantir o exercício de seus direitos civis e políticos no regime republicano, os negros de Florianópolis conviviam com memórias familiares ainda muito próximas do passado escravista da capital.
PEREIRA, Lucésia. Florianópolis, década de trinta: ruas, rimas e desencantos na poesia de Trajano Margarida. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2001.
TEIXEIRA, Luana; PEREIRA, Lucésia (Orgs.) Trajano Margarida: poeta do povo. Florianópolis: Cruz e Sousa, 2019.