Na casa do poeta, no gabinete do seu trabalho diário, passava eu muitas horas a fio, numa camaradagem singular de desprendimento pela vida lá de fora, onde os nossos inimigos formavam alas de combates ocultos, à socapa.
O pai do poeta possuía a serenidade de um apóstolo. E a doçura das suas palavras, e a meiguice dos seus olhos, e os gestos das suas mãos estendidas como para acalmar qualquer ira que quisesse explodir, herdava-os o filho amado, por quem ele, o velhinho, se desvelava, ouvindo-lhe a leitura dos bons livros.
E quando a flama vibrante esfuziava, batia asas e voava ao dorso dos nossos inimigos, o velhinho fazia parte da nossa alegria e encantadoramente ria, ria fantasticamente, com o cachimbo a fumegar ao canto da boca.
Mas quem às vezes se incomodava era a Carolina, a sua mãe, muito recatada e convencional, temendo grandes desgraças dos brancos contra o seu filho. E como andava ela seguidamente ao trabalho nas pedras da fonte, em conduzir roupas lavadas e engomadas à sua freguesia, não estava para perder o pão de cada dia pelas idéias do filho, o que, por várias vezes já tinha perdido em casas das senhoras S. e M. que a despediram com impropérios, visando a petulância do crioulo em querer escrever pelos jornais, como os brancos.
Mas não era má a Carolina; apenas não queria que o seu filho, com as suas esquisitices, ofendesse os brancos dos quais ela tirava proveito com a sua lavação e engomação, seus únicos meios de subsistência numa cidade tão pobre de recursos.
É que se lembrava de lhe morrer o marido e ver o filho longe de casa, tendo ela de gramar dificuldades quando lhe fossem fechadas as portas em represália a tudo quanto o poeta tivesse feito, em companhia dos amigos que não o poderiam valer, por serem todos sem eira nem beira.
Nesse extrato das suas memórias, o amigo também escritor Juvêncio de Araújo Figueiredo relata a convivência com Cruz e Sousa e com seus pais e revela que, enquanto Guilherme se divertia e se orgulhava do engajamento do filho nas batalhas do mundo literário e jornalístico da década de 1880, Carolina tinha receio de que a atitude combativa de Cruz e Sousa motivasse reações adversas. A precariedade da vida da família fica expressa no receio de prejudicar sua fonte de renda, que, àquela altura, era o trabalho como lavadeira e engomadeira para a população mais abastada. Aí se revela o limite das atitudes de confronto que Cruz e Sousa pudesse assumir: precisava garantir o sustento e não comprometer a família.
FIGUEREDO, Juvêncio de Araújo. No Caminho do Destino. In: CARNEIRO, Carlos da Silveira. Enciclopédia de Santa Catarina. Florianópolis. v. 20. Coleção especial de obras raras da Biblioteca Central da Universidade Federal de Santa Catarina.